A forma como os órgãos de comunicação social noticiam casos de violência familiar influencia diretamente a compreensão pública e pode reforçar estigmas ou prevenir novos episódios, alertou hoje a psicóloga Neusa Patuleia, que apelou à responsabilidade social.
“Pode, em algumas situações, ajudar a prevenir ou, pelo contrário, até reforçar estigmas e medos”, afirmou à Lusa a especialista, defendendo que se evite a “espetacularização e o sensacionalismo”.
A terapeuta familiar falava à Lusa após terem sido noticiados dois episódios recentes de violência grave. O homicídio da vereadora de Vagos (distrito de Aveiro) Susana Gravato, alegadamente cometido pelo filho de 14 anos, e a tentativa de homicídio do ex-presidente do Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo (OSCOT), José Manuel Anes, pela filha. A Polícia Judiciária está a investigar ambos os casos.
De acordo com a membro da direção da delegação regional do sul da Ordem dos Psicólogos Portugueses, os títulos chocantes devem ser evitados, bem como detalhes desnecessários, e que o foco da notícia deve estar na compreensão do sofrimento das pessoas envolvidas.
Sem se pronunciar sobre casos específicos, por razões éticas, Neusa Patuleia reforçou a importância de preservar a identidade das vítimas e evitar juízos morais que reforcem sentimentos de culpa.
“Muitas vezes, as pessoas estão em grande sofrimento. Há sempre sentimentos de culpa associados, juízos muito moralistas relativamente a encontrar culpados, a apontar dedos e sabemos que, atualmente, as redes sociais são exímias nisso”, alertou, defendendo que a violência deve ser entendida como um fenómeno multifatorial, que exige uma leitura psicológica, social e não apenas judicial.
A psicóloga também apelou à contenção na dramatização mediática, lembrando que na maioria dos casos não há dados suficientes para enquadrar devidamente o que está na origem da violência intrafamiliar.
Neusa Patuleia alertou ainda que casos extremos de violência familiar, como tentativas de homicídio, estão frequentemente associados a perturbações mentais graves e exigem uma intervenção sistémica e não centrada exclusivamente num agressor, seja criança, jovem ou adulto.
“A violência é sempre multifatorial”, salientou, defendendo uma leitura compreensiva dos fatores que contribuem para tais acontecimentos.
No caso da violência de filhos contra pais, a psicóloga sublinhou a importância de uma intervenção precoce, avisando que esta não deve incidir apenas sobre os jovens.
“É importante intervir no jovem, nos pais e na relação, sendo que a violência filioparental é um fenómeno resultante de um padrão relacional”, explicou.
A especialista realçou a importância de distinguir entre violência filioparental — agressões reiteradas de filhos contra pais — e o parricídio, que, embora extremo, é um fenómeno distinto, geralmente sem histórico prévio de violência.
“O parricídio não tem histórico prévio de agressões. É um acontecimento único que não envolve aqui uma escalada”, explicou.
Segundo Neusa Patuleia, a violência filioparental resulta de um padrão relacional que se desenvolve ao longo do tempo, com condutas violentas que visam controlar os pais ou obter algo deles.
Ao contrário de outras formas de violência intrafamiliar, onde se recomenda o afastamento entre agressor e vítima, neste caso “é essencial capacitar os pais para reestruturar a relação e restabelecer a autoridade parental”.
A psicoterapeuta lamentou que ainda não existam serviços especializados em Portugal para este tipo de violência, que permanece “muito encoberta e pouco falada”, sublinhando a necessidade de sinalização junto dos serviços de proteção à infância e juventude, e destacando o papel da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV).
Entre 2022 e 2024, mais de 2.800 pais agredidos pelos filhos pediram ajuda à APAV — um aumento de 27,1%, com uma média de 2,6 casos por dia.