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Mordidas de cobra matam 15 pessoas por hora no mundo e sobretudo os mais pobres

LUSA
27-01-2021 16:47h

A cada hora que passa cerca de 15 pessoas morrem no mundo devido ao envenenamento por mordida de cobra, a mais mortífera das doenças tropicais negligenciadas (DTN) que afetam sobretudo os mais pobres, segundo os Médicos Sem Fronteiras (MSF).

As DTN “afetam quase exclusivamente as pessoas que vivem em extrema pobreza. Como resultado, não existem vacinas, os instrumentos de diagnóstico são limitados e os tratamentos estão longe de ser ótimos e frequentemente indisponíveis ou inacessíveis para muitas destas doenças mortais e debilitantes”, escreve o presidente internacional dos MSF no relatório “Ultrapassar a negligência - Encontrar formas de gerir e controlar as DTN”, hoje divulgado.

Segundo Christos Christou, “apesar de afetar mais de 1,7 mil milhões e de matar centenas de milhares de pessoas por ano, as DTN geralmente permanecem fora do campo de interesse dos decisores políticos e há poucos recursos para os abordar”.

A mais mortífera destas doenças é o envenenamento por mordida de cobra. Todos os anos, mais de cinco milhões de pessoas são mordidas por cobras e, destas, entre 81.000 e 138.000 acabam por morrer por envenenamento, segundo números da Organização Mundial da Saúde (OMS), citados no relatório.

Deficiências como a cegueira, dificuldades de locomoção e amputação são outras das consequências da mordida de cobra que também pode levar ao desenvolvimento de perturbações psicológicas significativas, que vão desde os pesadelos ao transtorno de stress pós-traumático.

A morte por mordida de cobra é evitável, embora uma resposta rápida seja essencial, mas, para a maioria das vítimas de mordedura de cobra, o acesso aos cuidados é muito fraco.

Um estudo de 2010, que os autores referem no documento, estimou que apenas 2% de pessoas mordidas por cobras venenosas na África subsariana teve acesso a antivenenos de qualidade, e pouco mudou desde então.

“Muitas vezes não há transporte disponível para uma unidade de saúde e a maioria dos centros de saúde não tem ou tem apenas um baixo antivenenos de qualidade em stock, além de carecerem de equipamento essencial, como ventiladores. Faltam ainda profissionais de saúde treinados para lidar com envenenando por mordida de cobra”, lê-se no relatório.

A MSF trata anualmente cerca de 6.000 vítimas de mordidas de cobra, em dez países. Destes, 4.000 doentes são atendidos através de cinco projetos na Paoua, na República Centro-Africana (RCA), Agok, no Sul do Sudão, Abdurafi, na Etiópia, e Abs e Ibb, no Iémen.

Outra DTN abordada neste relatório é a leishmaniose humana (visceral e cutânea), uma infeção parasitária presente em cerca de 100 países, com mais de um milhão de novos casos anuais.

“A maioria dos doentes pertence a populações muito pobres e desfavorecidas, frequentemente a viver em cenários de conflito. Sem tratamento, a leishmaniose visceral leva à morte e a cutânea causa doenças de pele que podem provocar cicatrizes faciais estigmatizantes, debilitantes, lesões e a desfiguração”.

Em 2018, 83% dos casos comunicados ocorreu na Índia, Brasil, Sul do Sudão, Etiópia e Sudão, cada um deles relatando mais de 1.000 casos.

A maioria dos casos ocorreu na África Oriental, com 45% das situações.

A organização MSF encontrou pela primeira vez a leishmaniose em 1988, no Sudão, onde era conhecida como a “doença assassina”. Os médicos localizaram o epicentro do surto no que é agora o Estado da Unidade no Sul do Sudão, tratando 20.000 pacientes, entre 1989 e 1995.

O relatório dedica um capítulo à Tripanossomíase africana, conhecida como “doença do sono”, que já foi uma das DTN mais negligenciadas do mundo, mas que agora está “no bom caminho”, como reconhece a MSF.

A doença, causada por um parasita (transmitido pela mosca tsé-tsé) foi, no final do século XIX e início do século XX, “uma das principais causas de morte no (que era então) Congo belga. Enormes epidemias devastaram grandes áreas. Estima-se que, só em 1901, meio milhão de pessoas na bacia do Congo tenham morrido da doença”.

Atualmente, “e após várias intervenções de grande sucesso, a doença do sono está no bom caminho para eliminação mundial, com menos de 1.000 casos notificados em 2019”.

Entre 1986 e 2019, os MSF examinaram quase 3,5 milhões de pessoas devido à “doença do sono”, tratando mais de 50.000 doentes em sete países: Angola, Sudão do Sul, República Democrática do Congo, República Centro-Africana, Congo Brazzaville, Uganda e Chade).

No relatório, é analisada a evolução do noma (cancro oral), uma doença “negligenciada e pouco conhecida que afeta sobretudo as crianças a viver na pobreza”.

Trata-se de uma infeção da cavidade oral que progride rapidamente e destrói ossos e tecidos. Até 90% das crianças afetadas pelo noma morrem nas duas primeiras semanas se não receberem atempadamente tratamento com antibióticos.

Os que sobrevivem ficam com graves desfigurações faciais que dificultam funções como comer, falar, ver ou respirar. Enfrentam frequentemente o estigma social, a exclusão e a discriminação nas suas comunidades.

Em 1998, a OMS estimava que 140.000 novos casos de noma ocorressem anualmente a nível mundial e que 770.000 pacientes viviam com sequelas de noma.

Os MSF alertam para o facto de estas estimativas, baseadas na opinião de peritos, terem mais de 20 anos, defendendo com urgência estudos epidemiológicos mais robustos sobre o fardo do noma.

Sobre a Tripanossomose Humana Americana, conhecida como “doença de Chagas”, que é causada pelo parasita protozoário Trypanosoma cruzi, os MSF escrevem no relatório que entre seis a sete milhões de pessoas estão infetadas, de acordo com estimativas da OMS.

Trata-se da doença parasitária “mais comum na América Central e América do Sul, sendo a principal causa de insuficiência cardíaca e morte em países onde é endémica”.

No entanto, escrevem os autores, “estima-se que 99% das pessoas infetados com esta doença continuam por diagnosticar, com apenas cerca de 38.500 novos casos comunicados todos os anos”.

Segundo a MSF, “para cada 1.000 pessoas infetadas com Chagas, apenas duas recebem o tratamento de que necessitam”.

Christos Christou refere, no relatório, que “a resposta global à pandemia [de covid-19] demonstrou o que é possível quando há vontade política e investimento significativo de recursos”.

“Embora o acesso equitativo a estas inovações seja incerto, o mundo está a mobilizar-se para desenvolver vacinas, tratamentos, e testes de diagnóstico para a covid-19. O mesmo pode ser feito para as DTN”, disse.

E concluiu: “Podemos ultrapassar a negligência com os compromissos, fundos e melhores ferramentas para encontrar, diagnosticar e tratar pacientes. Podemos transformar as DTN em doenças do passado”.

Entretanto, a OMS lançou terça-feira um documento estratégico que visa reforçar a resposta global às DTN que estabelece metas para o controlo, eliminação e erradicação de 20 doenças associadas à pobreza.

“Acabar com a negligência para atingir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável: um roteiro para as doenças tropicais negligenciadas 2021-2030” é o nome do documento que apela a todos os intervenientes nas DTN para se reunirem em torno de um plano de trabalho comum.

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